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PROJETO “BEM-ME-QUER” DA POLÍCIA CIVIL

Por Delegada Mariana Gomes

Muito longe do ideal, mas muito mais perto do que a realidade poderia sonhar.”

Introdução

No tocante aos crimes cometidos com violência, a unidade de Polícia Judiciária constitui-se como a principal porta de entrada das denúncias. Não por outra razão e pela natureza da infração penal merecem os casos apresentados, desde o atendimento à proteção, especial atenção.

É de conhecimento que a legislação protetiva das mulheres, crianças e adolescentes é ampla e não somente em âmbito nacional. Inúmeras também são as regras externas. Contudo, a prática diverge da teoria e aqui reside a importância de se reconhecer que o “Bem-me-quer” constitui um avanço da polícia judiciária na observância de direitos das vítimas durante atendimento em sede policial, em especial a não revitimização.

O objetivo da presente escrita é o de, em síntese, jogar luzes sobre a realidade do atendimento inadequado às vítimas em sede policial em delegacias não especializadas, conduzir a reflexões sobre o problema, em sua magnitude, sobretudo demonstrar a importância de um olhar da polícia judiciária para as vítimas e realçar o avanço da polícia civil diante do relevante papel do projeto na prática.

Como “nasceu” o Bem-Me-Quer?

Diante da indignação durante atuação como Autoridade Policial em Delegacia no interior do Acre.

Desde que assumi, relatei inúmeros casos de estupro de vulneráveis, inclusive, na primeira semana em Sena Madureira, peguei cinco casos com sete vítimas no total. Comecei a estudar sobre o tema, sobre essa cultura do estupro, e foi exatamente esse estudo que construiu a base para eu ter inscrito o Projeto Bem-Me-Quer, que é da Polícia Civil, destacou. G1

Inicialmente, quando se fala em violência, especialmente a praticada nos “interiores”, o termo está emaranhado na temática “cultura” que, em sua concepção, pode-se definir como naturalização de comportamentos. Isso porque eles – comportamentos naturalizados – são condicionados pela cultura. É exatamente o que Denys explica: “(…) A noção de cultura se revela então o instrumento adequado para acabar com as explicações naturalizantes dos comportamentos humanos. A natureza, no homem, é inteiramente interpretada pela cultura.” (CUCHE, 1999, p. 10)

Fato é que a Unidade de Polícia Judiciária é a porta de entrada para as vítimas que enfrentam inúmeros desafios até criar coragem para conseguir denunciar de forma que o atendimento por policial capacitado e em ambiente adequado em sede policial é imprescindível para o correto acolhimento dessa vítima visando, ainda, evitar ao máximo a revitimização.

Os danos emocionais que a infração violenta por si só causa são incalculáveis de forma que são reforçados se o atendimento não for prestado com humanidade e, aqui, inclui-se o atendimento em ambiente minimamente reservado. Ademais, em se tratando de violência sexual, a atenção deve ser ainda mais especial exigindo uma postura ativa para se evitar ao máximo a vitimização secundária (violência institucional) em todas as fases da persecução penal.

Diante da inobservância de tratamento mínimo às vítimas atendidas no interior, restou o questionamento: a capital possui Delegacia Especializada que consiste em profissionais capacitados e ambiente minimamente adequado, o que fazer para adequar o atendimento às vítimas de violência nas delegacias dos interiores? Assim surgiu na prática (bem longe ainda do ideal, pontua-se) o Projeto “Bem-Me-Quer”.

Implementação do Projeto

A primeira sala de atendimento foi inaugurada em janeiro de 2021 na cidade de Sena Madureira, distante da capital Acreana 144. Posteriormente, a sua implementação foi estendida para Manoel Urbano, Senador Guiomard e até na cidade isolada e de difícil acesso Santa Rosa do Purus (limitada ao sul com o Peru, e tendo como ponto de entrada o rio Purus).

O trabalho da delegada foi o pontapé inicial para que o estado estabelecesse uma padronização de estrutura para atendimento a vítimas de violência doméstica e familiar, seja mulheres ou crianças, nas delegacias do interior do Acre, com a criação de sala específica.

Contudo, oficialmente, o projeto somente foi reconhecido com a portaria institucionalmente regulamentada em maio de 2022 (Portaria Regulamentar Nº 02 De 17 De Maio De 2022) que institui a padronização da estrutura do ambiente, recepção, acolhimento e atendimento às vítimas de violência no âmbito de Polícia Civil do Estado do Acre, nas Delegacias de Polícia do interior do Estado, por meio da implementação do Projeto “Bem-me-Quer”.

Dentre os “considerandos”, há estima de que a Polícia Civil do Estado do Acre está comprometida com o atendimento adequado das pessoas vítimas de violência que procuram a sede da polícia civil buscando registrar as mais diversas ocorrências diariamente. Destaca-se que a instituição possui importante papel no combate aos mais diversos tipos de violação de direitos praticados em desfavor de crianças e adolescentes e de violência doméstica e familiar contra mulher, uma vez que, nas atribuições constitucionalmente definidas, cabe a ela realizar investigações criminais.

Ademais, a Polícia Civil deve estar atenta, por mister constitucional, aos direitos inerentes ao ser humano e ao resguardo da proteção de vítimas crianças e adolescentes de violência, inclusive sexuais, bem como de violência doméstica e familiar contra a mulher, da necessidade um atendimento diferenciado no sentido de minimizar ao máximo os danos e traumas já sofridos pela prática, por si só, que a infração penal já causa. Aqui entra a questão da revitimização que é uma das principais preocupações do projeto.

Dentre outros fundamentos, ainda, destaca-se:

CONSIDERANDO a necessidade de se adequar o ambiente, acolhimento, recepção e os atendimentos, em âmbito de polícia judiciária nas delegacias do interior, as quais não dispõem de delegacias especializadas, das vítimas de violência física, psicológica, moral, patrimonial, sexual que envolvem mulheres, adolescentes e crianças às normas infraconstitucionais existentes, quais sejam: 1. vítimas mulheres de violência doméstica e familiar contra a mulher – Lei n 11.340/2006 (Lei Maria da Penha); 2. vítimas de violência Crianças e Adolescentes – Lei 13.431/2017.

Note, portanto, que o projeto, em sua essência, é voltado para a necessidade de se adequar o ambiente, acolhimento, recepção e os atendimentos das vítimas de violência física, psicológica, moral, patrimonial, sexual que envolvem mulheres, adolescentes e crianças.

Por fim, cabe enaltecer que, muito antes da Lei n°. 14.451/2023[5], o “Bem-Me-Quer” já demonstrava preocupação em priorizar os atendimentos da mulher de violência por agente feminina especializada conforme o seguinte dispositivo:

Art. 5°, IV, da Portaria Regulamentar n°. 02/2022 da Polícia Civil do Acre: O acolhimento e atendimento às vítimas de violência devem ser prestados integralmente na sala, local apropriado e estruturado conforme as diretrizes acima estabelecidas, por policial preferencialmente do sexo feminino, capacitado, que deverá adotar todas as medidas cabíveis, inclusive, em se tratando de vítima mulher de violência doméstica e familiar, deverá preencher o Formulário Nacional de Avaliação de Risco da mulher vítima de violência doméstica, conforme relatório próprio do Conselho Nacional de Justiça, e em atendimento à lei 14.149/2021- Anexo II.

Da importância do atendimento adequado em sede policial

Um dos objetivos do “Bem-Me-Quer”, de acordo com o art. 3° da Portaria Regulamentar n°. 02/2022, é normatizar que a sala de atendimento deve proporcionar um ambiente adequado e estruturado, especificamente, para os atendimentos, em sede policial, às vítimas de violência, objetivando o combate eficiente às infrações penais de natureza sensível, evitando, ao máximo, a revitimização[6] – vitimização secundária – na apuração dos crimes, e estimulando as denúncias, de forma a diminuir a estatística das denominadas “cifras negras” e consequentemente a impunidade dos crimes praticados com violências às vítimas no interior do Estado do Estado do Acre.

Verificam-se, no referido dispositivo, alguns dos pontos importantes, dentre os quais são destacados:

  1. estruturação: que a sala deve consistir em um ambiente acolhedor com decoração lúdica, de forma que a vítima tenha resguardada a intimidade e a privacidade;
  2. atendimento: humanizado que, não só em sede policial, deve-se evitar ao máximo a revitimização;
  3. objetivo: combate eficiente aos crimes violentos por meio da repressão e prevenção e estímulo de denúncias como ação à impunidade.

Nesse sentido, a abordagem da inquirição de vítimas é de grande preocupação na atualidade, pois a indagação inadequada, além de prejudicar a prova, causa dano psicológico. Não por outra razão que o art. 5° da Portaria Regulamentar n. 2/2022 da PCAC dispõe sobre o fluxo de recepção, acolhimento e atendimento às vítimas de violência nesse sentido. E, para garantir a intimidade e privacidade, o ambiente reservado e acolhedor é fundamental para a colheita do relato das vítimas garantindo-se, especialmente, a não revitimização.

(…) os diversos danos são incalculáveis e se exige uma postura ativa para se evitar ao máximo a vitimização secundária (violência institucional) em todas as fases da persecução penal. A abordagem da inquirição de vítimas é de grande preocupação na atualidade, pois a indagação inadequada, além de prejudicar a prova, causa dano psicológico.

Ademais, o “sistema de Justiça está vivenciando um estado de redescoberta da vítima no processo criminal e penal e essa larga compreensão do sujeito vítima implica mudanças internas de todas as ordens” de forma que se deve atentar que a violência institucional e social, além de causar danos irreparáveis às vítimas, gera o silenciamento de crimes dessa natureza e o aumento da cifra negra, o que dificulta a repressão e ocasiona, por conseguinte, a impunidade.

Entretanto, o mundo “ideal” (teoria) diverge da realidade (prática). Em muitos lugares, a título de exemplo, o Estado do Acre não dispõe delegacias estruturadas com aparelhamento de gravação em áudio e vídeo. Ademais, sequer dispõem as unidades de Polícia Judiciária de ambiente reservado e minimamente adequado para a oitiva dessas vítimas. Exatamente a razão pela qual o “Bem-Me-Quer” constitui um avanço pela Polícia Civil do Acre, já implementado e em funcionamento em 4 cidades do interior do Estado.

Considerações

Muito longe do ideal, mas muito mais perto do que a realidade poderia sonhar. Assim se define a implementação do “Bem-Me-Quer” atualmente em funcionamento em 4 cidades do interior do Acre e com perspectiva de ser implementado em todas as demais cidades do interior.

Não se duvida a importância de um ambiente adequado e atendimento humanizado em sede policial. O sucesso da implementação nas demais cidades do projeto encontra maiores barreiras políticas e de investimento que de reconhecimento da sua importância.

A polícia judiciária possui um dos mais importantes papéis por ser a porta de entrada de crimes de natureza violenta e, exatamente por isso, que deve ter maior consciência acerca da importância de um ambiente adequado e atendimento capacitado visando evitar ao máximo a revitimização e cumprir sua atribuição constitucional com maestria.

Evidentemente a “prática” é distante da “teoria” e o enfretamento ao combate à violência também encontra barreiras outras como nos aspectos sociais e culturais. Contudo, há inegável seriedade na repressão de forma adequada e com olhar humanizado para às vítimas partida da Polícia Judiciária que é uma das principais portas de entrada das denúncias.

E, diante de todo o exposto, deve ser reconhecido como avanço pela instituição acreana no atendimento às vítimas de violência no interior do Estado por meio do Projeto “Bem-Me-Quer”, o que comprova não só pelo interesse, como também a efetiva atuação na repressão e prevenção de crimes de natureza sensível por parte da Polícia Civil do Acre.

Referências

CUCHE, Denys. A Noção de Cultura nas Ciências Sociais. Bauru-SP: EDUSC, 1999.

GADELHA, Alcinete. Delegacias no interior do AC devem instalar sala para acolhimento a vítimas de violência doméstica e familiar, 2022. Disponível em: <www.g1.globo.com/ac/acre/noticia>. Acesso em 22/05/2023.

GOMES, Mariana e outras. “Mulheres na Polícia Judiciária. Da teoria à prática, do gabinete às ruas”. 1ª. ed. Cuiabá-MT: Umanos Editora, 2022.

MINISTÉRIO PÚBLICO DO ACRE. Mulheres Vivas: Feminicídio é evitável. 2ª Edição. Rio Branco-AC: Realidades, 2023.

NASCIMENTO, Aline. Em livro, delegada fala sobre projeto que implantou no interior do AC para atender vítimas de abuso sexual, 2022. Disponível em: <www.g1.globo.com/ac/acre/noticia>. Acesso em 24/05/2023.

SANTOS, Juarez Cirino. A Criminologia radical. Curitiba: IPCP: Lumen Juris, 2006.


Autora: Mariana Gomes – Delegada de Polícia no Estado do Acre, atualmente lotada na DEAM – Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher – Rio Branco. Já atuou no interior em Sena Madureira, Manoel Urbano e Santa Rosa do Purus. Idealizadora do Projeto “Bem-me-quer” da Polícia Civil do Acre. Especialista em Ciências Criminais, Direito Constitucional e Segurança Pública. Professora de Direito Constitucional e Coordenadora de curso específico para o cargo de Delegado de Polícia. Coautora do Livro “Mulheres na Polícia Judiciária. Da teoria à prática, do gabinete às ruas” da Umanos Editora.

NASCIMENTO, Aline. Em livro, delegada fala sobre projeto que implantou no interior do AC para atender vítimas de abuso sexual, 2022. Disponível em: <www.g1.globo.com/ac/acre/noticia>. Acesso em 24/05/2023.

O autor ainda assevera na página 11: “(…) Nada é puramente natural no homem. Mesmo as funções humanas que correspondem a necessidades fisiológicas, como a fome, o sono, o desejo sexual, etc. são informados pela cultura.”

NASCIMENTO, Aline. Em livro, delegada fala sobre projeto que implantou no interior do AC para atender vítimas de abuso sexual, 2022. Disponível em: <www.g1.globo.com/ac/acre/noticia>. Acesso em 24/05/2023.

Lei n. 14.451/2023, Art. 4º: Nos Municípios onde não houver Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam), a delegacia existente deverá priorizar o atendimento da mulher vítima de violência por agente feminina especializada. (lei publicada em 4.4.2023).

Portaria Regulamentar da PC-AC n. 02/2022, Art. 5°, III: “Em seguida, deve providenciar o imediato encaminhamento da vítima à sala estruturada para acolhimento e atendimentos às vítimas de violência (Projeto Bem-Me-Quer), evitando-se, assim, a revitimização da vítima em relatar os fatos em recepção geral de delegacia, sem prejuízo de ser dada toda a assistência a mulher, criança e adolescente vítimas assim que comparecerem à Delegacia de Polícia no momento de recepção.”

GOMES, Mariana e outras. Cultura do estupro: das barreiras encontradas no combate à violência sexual de crianças e adolescentes. In: “Mulheres na Polícia Judiciária. Da teoria à prática, do gabinete às ruas”. 1ª Edição. Cuiabá-MT: Umanos Editora, 2022. Pgs. 124/131.

MINISTÉRIO PÚBLICO DO ACRE. Mulheres Vivas: Feminicídio é evitável. 2ª Edição. Rio Branco-AC: Realidades, 2023. Pg. 7.

“(…) cifra negra representa a diferença entre aparência (conhecimento oficial) e a realidade (volume total) da criminalidade convencional”. SANTOS, Juarez Cirino.A Criminologia radicalCuritiba: IPCP: Lumen Juris, 2006, pg. 13.