Notícias

Desarmamento no Brasil: Direito Penal Simbólico e a Ilusão da Segurança

Por Kallil Alves Reis – Inspetor Especial de Polícia do Acre

Kallil Alves Reis – Inspetor Especial de Polícia, graduado em Direito pela Universidade Federal do Acre, pós-graduado em Segurança Pública. Foto: arquivo pessoal.

O Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/2003), criado sob a justificativa de reduzir os alarmantes índices de homicídios no Brasil, é um retrato fiel de um fenômeno jurídico cada vez mais presente: o Direito Penal Simbólico. Trata-se de legislações que aparentam solucionar problemas complexos com respostas penais imediatas, mas que na prática servem mais para sinalizar ação do que para transformar realidades.

Desde sua criação, o Estatuto prometia restringir o acesso às armas de fogo, com o objetivo de diminuir a violência urbana. No entanto, quase duas décadas depois, os números revelam que a promessa não foi cumprida. Segundo dados do Global Burden of Disease, em 2016 o Brasil registrou mais de 43 mil mortes por armas de fogo — 94% delas homicídios. Entre 2003 (ano de sanção da lei) e 2014, houve um aumento de 12,34% nas mortes por armas de fogo, passando de 39.325 para 44.861. Se a intenção era reduzir a violência, o efeito foi, no mínimo, nulo.

A explicação pode estar no foco equivocado da legislação. Leis restritivas como essa atingem justamente aqueles que obedecem à lei — o cidadão comum que busca registrar e manter legalmente uma arma de fogo para proteção pessoal, patrimonial ou esportiva. Já os criminosos, que não se preocupam com requisitos legais, continuam se armando através do mercado ilegal, alimentado por fronteiras frágeis e fiscalização ineficiente.

Uma pesquisa realizada em delegacias do Estado do Acre, entre 2017 e 2019, confirma essa percepção: mais de 90% dos homicídios com arma de fogo estavam relacionados a crimes como tráfico de drogas e disputas entre facções — ou seja, praticados por criminosos reincidentes. Já os crimes passionais, cometidos geralmente por cidadãos primários, utilizavam mais frequentemente armas brancas ou outros meios:

Figura 2: Mortes por armas de fogo no ano de 2017

Fonte:  Diretoria de Policia Civil do Estado do Acre/Departamento de Inteligência

Figura 3: Mortes por armas de fogo no ano de 2018

Fonte: Diretoria de Policia Civil do Estado do Acre/Departamento de Inteligência

Outro argumento recorrente na defesa do desarmamento é o risco de suicídios com armas de fogo. Mas os dados do mesmo levantamento revelam que o principal meio de suicídio no Acre, durante o período analisado, foi o enforcamento — responsável por cerca de 70% das mortes. Armas de fogo estiveram longe de figurar como principal instrumento:

Figura 5: Suicídios referentes aos anos 2017- primeiro semestre de 2019

Fonte: Diretoria de Policia Civil do Estado do Acre/ Departamento de Inteligência.

O referendo de 2005 reforça o descompasso entre a vontade popular e a norma jurídica: 63% da população votou contra a proibição da comercialização de armas, deixando claro que o cidadão não acreditava na eficácia da medida. Mesmo assim, a legislação permaneceu praticamente inalterada. Uma democracia madura precisa ouvir sua população — principalmente em temas sensíveis como este, que envolvem direitos fundamentais, como o da legítima defesa.

Comparações internacionais também ajudam a desmistificar a relação direta entre armas e violência. O Uruguai, por exemplo, possui uma das maiores taxas de armas per capita da América Latina (mais de 34 armas para cada 100 habitantes), mas apresenta uma taxa de homicídios por armas de fogo muito inferior à brasileira. O mesmo se aplica a países como Suíça e Estados Unidos, cujas políticas armamentistas são menos restritivas e, ainda assim, apresentam taxas de crimes violentos inferiores às do Brasil:

Figura 1: Mortes por armas de fogo em relação número de armas

Fonte: small arms survey and Global Mortality From Firearms

Esses dados nos levam a questionar a lógica por trás do desarmamento civil. Se a presença de armas por si só não explica a violência — e, em alguns casos, sua ausência não a reduz, então por que tanto esforço legislativo em restringir seu acesso?

A resposta pode estar no campo simbólico da política criminal. Leis penais muitas vezes são utilizadas como respostas emocionais a clamores sociais por segurança, especialmente quando outros mecanismos falham. É uma forma de o Estado mostrar “ação” sem necessariamente enfrentar as causas reais da violência — desigualdade social, ausência do Estado em áreas periféricas, impunidade, falência do sistema prisional, entre outras.

A doutrina penal chama esse fenômeno de função latente da norma: a real motivação por trás da lei não é aquela que está escrita no papel (reduzir homicídios), mas sim satisfazer a expectativa simbólica de que “algo está sendo feito”. É, portanto, um engano institucionalizado. Como bem define o jurista Winfried Hassemer, no Direito Penal Simbólico “não se pode confiar na norma tal como se apresenta”.

Essa lógica simbólica também dialoga com outro fenômeno contemporâneo: a chamada “esquerda punitiva”, conceito desenvolvido por Maria Lúcia Karan, que descreve o processo em que setores progressistas — historicamente defensores das liberdades civis — passam a endossar políticas penais repressivas diante da crescente sensação de insegurança. Assim, o Direito Penal torna-se um anestésico para a angústia social, ainda que ineficaz em termos reais.

A questão que se impõe, portanto, é: de que adianta criar leis simbólicas, que não reduzem a violência, mas apenas restringem direitos de quem obedece à lei? O verdadeiro impacto do Estatuto do Desarmamento foi a criação de uma série de barreiras legais que dificultam o acesso de cidadãos de bem às armas de fogo, sem tocar no principal problema: o armamento de criminosos.

Não se trata aqui de defender o armamento irrestrito, tampouco negar os riscos que o mau uso de armas representa. Mas sim de exigir que o debate público sobre segurança se baseie em dados concretos, e não em ideologias ou desejos de vendeta. O caminho da paz social não passa, necessariamente, pela proibição, mas pela responsabilidade, educação e respeito à liberdade individual.

Em vez de continuar apostando em leis penais simbólicas, precisamos repensar o papel do Estado na segurança pública. A solução não virá de mais proibições, mas de políticas efetivas de prevenção, inteligência policial, fortalecimento das fronteiras e combate ao crime organizado. A violência não se combate com ilusões legislativas, mas com ações concretas.

BIBLIOGRAFIA

ACRE (Estado) Diretoria de Policia Civil do Estado do Acre. Departamento de Inteligência. Rio Branco-AC, 2020.

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA; FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Atlas da Violência 2019. CERQUEIRA, Daniel; et al. (Org.) São Paulo: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada-IPEA; 2019. 116 p. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/19/atlas-da-violencia-2019. Acesso em: 30 nov. 2019.

FUZIGER, Rodrigo José. As Faces de Jano: O Simbolismo no Direito Penal. 2014. 319 p. Direito Penal – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.

GBD 2016, Injury Collaborators. Global Mortality From Firearms, 1990-2016. JAMA. 28 Aug 2018; 320(8):792-814. Disponível em: https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/2698492. Acesso em: 18 jun. 2019.
GENY, F. Livro do Centenário do Código Civil Francês apud CARVALHO, Kildare Gonçalves. Técnica Legislativa. 4 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
 
GIL, A. C. Métodos e técnicas de pesquisa social. 4. ed. São Paulo: Atlas, 1994.
GLOBAL BURDEN OF DISEASE. GBD 2016 Injury Collaborators. Global Mortality From Firearms, 1990-2016. JAMA. 28 Aug 2018; 320(8):792-814. Disponível em: doi:10.1001/jama.2018.10060. Acesso em: 18 mar. 2018.

KARAM, Maria Lúcia. A Esquerda Punitiva. Blogdaboinotempo, 2015. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2015/07/28/a-esquerda-punitiva/. Acesso em 25 ago. 2020.

KARP, Aaron. small arms survey, 2018. Disponível em: http://www.smallarmssurvey.org/weapons-and-markets/tools/global-firearms-holdings.html. Acesso em: 20 out. 2019.

MASSON, Cleber. Direito penal esquematizado – Parte geral – vol.1 / Cleber Masson. – 9.ª ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2015.

QUINTELA, Flavio; BORBOSA, Bene. Mentiram pra mim sobre o desarmamento. Ed.1. Campinas, SP: Vide Editorial, 2015. 110 p.