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Imprescindibilidade do Atendimento 24h nas Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher – DEAMs

Por Mariana Gomes, Delegada de Polícia Civil no Acre, atualmente plantonista na
DEAM/DECAV da capital acreana. Especialista em Ciências Criminais, Direito
Constitucional e Segurança Pública. Graduanda do Curso de Especialização em
Enfrentamento à Violência contra Mulheres e Meninas pela Universidade Federal de
Goiás. Ex-Assessora Jurídica do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Autora,
professora e coordenadora de curso específico para o cargo de Delegado de Polícia.

O mundo ainda é bastante difícil para nós, mulheres, que temos que superar dificuldades e obstáculos cotidianamente, em todos os espaços e relações sociais. Mas conseguimos, ainda assim, vislumbrar avanços. Seja nos espaços
criados para diálogos e reflexão, seja no aperfeiçoamento de mecanismos de proteção na justiça, na assistência social, nas empresas, no mundo doméstico e no privado. Seja por sermos, sempre, resistência.1

Introdução

A violência doméstica remonta à sociedade patriarcal e é parte cotidiana da vida
de milhares de meninas e mulheres brasileiras. Há inúmeras normas protetivas acerca dos
direitos das mulheres não só internamente como a Lei Maria da Penha, ou seja, em âmbito
nacional, a proteção é ampla também externamente, a título de exemplo a Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, e a Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.

Felizmente, a violência de gênero tem sido destaque e vem ganhando notoriedade,
de forma que a reação legislativa caminha no sentido de sempre buscar a ampliação da
proteção. Contudo, o grande desafio é fazer com que todo o aparato legal combativo e
protetivo se traduza na vida real e garanta o efetivo atendimento especializado ininterrupto
em sede policial de todas as mulheres em situação de violência em qualquer dia e horário.

A problemática é alarmante, pois conforme dados do Alto Comissariado das Nações
Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), o Brasil está em quinto lugar no ranking
mundial de feminicídios, com aumento de 5% nos casos de feminicídio em 2022 em
comparação com 2021.

O propósito do artigo é trazer a lume a imprescindibilidade do funcionamento
ininterrupto e 24h das delegacias especializadas no atendimento à mulher como forma de
enfrentamento a esse fenômeno social que é a violência de gênero contra as mulheres cis,
trans e travestis, visando dar concretude aos comandos legais protetivos existentes
demonstrando que este (funcionamento 24h das Deams) é uma das soluções ao combate
eficiente da violência de gênero, uma das mais graves e generalizadas violações de direitos
humanos.

Legislação Protetiva às Mulheres

Internamente, reconhecida como marco brasileiro na tutela de direitos
relacionados ao gênero feminino, a principal norma é a Lei Maria da Penha, originada
de responsabilização internacional do Brasil perante a Comissão Interamericana de
Direitos Humanos ante a ineficiência do emblemático caso de Maria da Penha Maia
Fernandes.

A Lei entrou em vigor em 07 de agosto de 2006 e, segundo consta do seu artigo
1°, cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a
mulher, nos termos do §8º do art. 226 da Constituição Federal2 , de tratados internacionais
ratificados pela República Federativa do Brasil, dispõe sobre a criação dos Juizados de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e estabelece medidas de assistência e
proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

Conforme estabelece, a Lei nº 11.340/06 foi criada não apenas para atender ao
disposto no art. 226, §8°, da Constituição Federal, que considerou ser dever do Estado
assegurar a igualdade substancial nas relações domésticas, em razão da necessidade de
proteção específica e da continuada relação de submissão experimentada pelas mulheres, mas também para dar cumprimento a diversos tratados internacionais ratificados pela
República Federativa do Brasil.

O objetivo está convergente com o dever do Estado de, por meio de prestações
positivas (ações afirmativas), extirpar a desigualdade histórica que existe entre homens e
mulheres, construindo uma igualdade para além da meramente formal, estabelecida no
art. 5º, I, da CRFB, ou seja, uma igualdade materialmente perceptível no âmbito das
relações sociais.

Explica o doutrinador Renato Brasileiro (2020, pg. 1255):


Com o objetivo de compensar desigualdades históricas entre os gêneros masculino e feminino, e de modo a estimular a inserção e inclusão desse grupo socialmente vulnerável nos espaços sociais, promovendo-se, assim, a tão desejada isonomia constitucional entre homens e mulheres (CF, art. 5°, I), esta Convenção passou a prever a possibilidade de adoção de ações afirmativas (“discriminação positiva”). Afinal, a promoção da igualdade entre os sexos passa não apenas pelo combate à discriminação contra a mulher, mas também pela adoção de políticas compensatórias capazes de acelerar a igualdade de gênero.

Para a aplicação da norma protetiva, é necessário verificar o disposto no seu art. 5° que descreve como violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial. A violência sofrida, frisa-se, deve ser enquadrada em uma das seguintes hipóteses:

I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;

II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;

III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a fendida, independentemente de coabitação.

É bom esclarecer que a referida Lei (Maria da Penha) não restringiu qualquer
proteção, tendo declarado expressamente que “as relações pessoais enunciadas neste artigo ndependem de orientação sexual.” Ademais, a violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos.

Desta forma, o conceito de violência doméstica e familiar, considerando o termo “violência”, na Lei Maria da Penha, abarca: a violência física, a violência psicológica, a violência sexual, a violência patrimonial e a violência moral. Note que o art. 7° faz uso da expressão “entre outras”, portanto não se trata de um rol taxativo, mas sim exemplificativo. Logo, é perfeitamente possível o reconhecimento de outras formas de violência doméstica e familiar contra a mulher. Tem-se aí verdadeira hipótese de interpretação analógica. Resumidamente segue cada tipo de violência doméstica e familiar contra a mulher trazida pela Lei:

violência física – entendida como qualquer conduta que ofenda sua
integridade ou saúde corporal;

  • violência psicológica – entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima, lhe prejudique o pleno desenvolvimento, ou que vise degradar ou controlar suas ações de maneira geral. Aqui, frisa-se que a Lei 13.772/2018 acrescentou um novo crime ao Código Penal, qual seja, o crime de registro não autorizado da intimidade sexual (art. 216-B) e promoveu uma pequena mudança na Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) para deixar expresso que a violação da intimidade da mulher é uma forma de violência doméstica, classificada como violência psicológica;

  • violência sexual – entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;

  • violência patrimonial – a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; e por fim

  • violência moral – entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria. Feitos os esclarecimentos jurídicos acerca da norma interna protetiva e sua aplicação, seguimos para o foco da abordagem do presente artigo.

Atendimento às vítimas de Violência Doméstica e Familiar

Constatada a iminência ou a prática de violência com os consectários da Lei Maria da Penha, a autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência adotará, de imediato, as providências legais cabíveis. Aqui deve ser esclarecido que a regra é a vítima levar ao conhecimento da polícia a violência sofrida, sendo que a delegacia de polícia judiciária constitui a principal porta de entrada das denúncias de crimes dessa natureza.

Dentro desse cenário, a legislação foi cuidadosa, pois ciente de que a delegacia é um ambiente, por natureza hostil, estabeleceu o legislador uma série de providências a serem adotadas em âmbito policial quanto à inquirição, atendimento, e ambiente adequado.

No tocante à inquirição de mulher em situação de violência doméstica e familiar ou de testemunha de violência doméstica, quando se tratar de crime contra a mulher, obedecerá às seguintes diretrizes:

I – salvaguarda da integridade física, psíquica e emocional da depoente, considerada a sua condição peculiar de pessoa em situação de violência doméstica e familiar;

II – garantia de que, em nenhuma hipótese, a mulher em situação de violência doméstica e familiar, familiares e testemunhas terão contato direto com investigados ou suspeitos e pessoas a eles relacionadas;

III – não revitimização da depoente, evitando sucessivas inquirições sobre o mesmo fato nos âmbitos criminal, cível e administrativo, bem como questionamentos sobre a vida privada.

Ainda, acerca da inquirição de mulher protegida pela Lei Maria da Penha, adotarse-á, preferencialmente, o seguinte procedimento:

I – a inquirição será feita em recinto especialmente projetado para esse fim, o qual conterá os equipamentos próprios e adequados à idade da mulher em situação de violência doméstica e familiar ou testemunha e ao tipo e à gravidade da violência sofrida;

II – quando for o caso, a inquirição será intermediada por profissional especializado em violência doméstica e familiar designado pela autoridade judiciária ou policial;

III – o depoimento será registrado em meio eletrônico ou magnético, devendo a degravação e a mídia integrar o inquérito.

Acerca do ambiente, este deve ser adequado. Dispõe a Lei (art. 10-A, §2°, I da Lei n° 11.340/2006) que a inquirição deve ser realizada em recinto especialmente projetado para esse fim, o qual conterá os equipamentos próprios e adequados à idade da mulher em situação de violência doméstica e familiar ou testemunha e ao tipo e à gravidade da violência sofrida.

Em relação ao atendimento, deve a autoridade policial, nos casos específicos envolvendo infrações praticadas no contexto doméstico e familiar contra a mulher, garantir proteção policial, quando necessário; encaminhar a ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao Instituto Médico Legal; fornecer transporte para a ofendida e seus dependentes para abrigo ou local seguro, quando houver risco de vida; se necessário, acompanhar a ofendida para assegurar a retirada de seus pertences do local da ocorrência ou do domicílio familiar; informar à ofendida os direitos a ela conferidos na Lei Maria da Penha e os serviços disponíveis, inclusive os de assistência judiciária para o eventual ajuizamento perante o juízo competente da ação de separação judicial, de divórcio, de anulação de casamento ou de dissolução de união estável.

Das Delegacias de Atendimento à Mulher – DEAMs

O legislador, atrelado aos anseios midiáticos, estipulou, no art. 12-A da Lei n° 11.340/2006, que os Estados e o Distrito Federal, na formulação de suas políticas e planos de atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, darão prioridade, no âmbito da Polícia Civil, à criação de Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (Deams), de Núcleos Investigativos de Feminicídio e de equipes especializadas para o atendimento e a investigação das violências graves contra a mulher.

A título de curiosidade, em 6 de agosto de 1985, justamente na culminância da Década da Mulher declarada pela ONU, o Estado de São Paulo foi pioneiro no país na criação da primeira Delegacia de Defesa da Mulher (DDM). No mesmo ano, foi criado o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), através da Lei nº 7.353/85.

A Lei nº 14.541, de 3 de abril de 2023 dispõe sobre a criação e o funcionamento ininterrupto de Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher que possui como finalidade o atendimento de todas as mulheres que tenham sido vítimas de violência doméstica e familiar, crimes contra a dignidade sexual e feminicídios. A legislação igualmente cautelosa determina que as DEAMs funcionarão ininterruptamente, inclusive em feriados e finais de semana.

Aliada aos ditames da Lei Maria da Penha, a Lei nº 14.541/2023 dispõe que o atendimento às mulheres nas delegacias será realizado em sala reservada e, preferencialmente, por policiais do sexo feminino. Ademais, há a preocupação pela capacitação dos policiais ao estipular que os policiais encarregados pelos atendimentos deverão receber treinamento adequado para permitir o acolhimento das vítimas de maneira eficaz e humanitária.

Note que a preocupação combativa à violência de gênero do legislador está diretamente atrelada a 3 pilares: inquirição, atendimento, e ambiente, de forma que a Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher garante os direitos inerentes às mulheres de forma integral, o que não é possível em sede policial não especializada.

Ausência de atendimento especializado

A cultura patriarcal e machista enraíza a violência doméstica o que dificulta a percepção da mulher de que está vivenciando o ciclo da violência. Os crimes envolvendo violências contra mulheres não tem hora. Consequentemente, os atendimentos devem existir 24h e aqui reside a importância do tema: as DEAMs devem ter funcionamento 24h ininterrupto para que atenda com integralidade e eficiência de forma especializada todas as demandas.

Contudo, por questões de alocação orçamentária para o enfrentamento da violência contra mulheres e, sem recursos financeiros, materiais e humanos, a maioria dos Estados dispõe (quando dispõe de DEAM) de atendimento especializado somente no horário do expediente e, após, o caso normalmente é encaminhado às centrais de flagrante.

Como se sabe, delegacia de flagrante recebe qualquer tipo de ocorrência resultando na divisão de espaço das vítimas mulheres em situação de vulnerabilidade que são as de violência doméstica e familiar contra a mulher com qualquer caso de natureza diversa, como tráfico de drogas, roubos, homicídios, etc.

Em pesquisa publicada, revelou-se que, de 492 delegacias especializadas no
atendimento à mulher no país, apenas 60 (ou 12,1%) funcionam 24 horas por dia. Os
dados foram levantados pelo g1 junto aos governos estaduais.3 O resultado retrata a
realidade brasileira em falta de investimento necessário nas DEAMs.

A título de exemplo, no Estado do Acre, que figura nas primeiras colocações do ranking em feminicídio do Brasil com “60 mulheres assassinadas por motivação de gênero contra a mulher, tanto dentro quanto fora do contexto doméstico e familiar” (2018 a 2022) 4 , a DEAM da capital passou a funcionar 24h somente em abril de 2023. Até então, as ocorrências eram apresentadas na Delegacia Central de Flagrantes – DEFLA, isto é, em local inadequado para atendimento às vítimas de gênero e ausentes policiais capacitados. Nas demais 21 cidades do Estado não há acolhimento especializado 24h para mulheres, resultando na triste realidade do atendimento em sede policial comum, ou seja, sem a estrutura, inquirição e recepção adequadas e garantidas pela legislação protetiva.5

Da imprescindibilidade do atendimento 24h nas DEAMS

G1. Apenas 12% das delegacias da mulher no país funcionam 24 h. Disponível em: . Acesso em 24.01.2024) 4 Realidades: mulheres vivas : feminicídio é evitável : um estudo da violência letal contra mulheres por serem mulheres no Acre (2018-2022) / coordenação Patrícia de Amorim Rêgo, Aretuza de Almeida, Marcela Cristina Ozório ; ilustração Claudeney Alves de Souza. — 2. ed. — Rio Branco, AC: Ministério Público do Estado do Acre, 2023, pg. 15. Disponível em: . Acesso em 25.01.2024, pg. 26. Disponível ainda os dados em FEMINICIDÔMETRO. Disponível em: . Acesso em 25.01.2024. 5 Vale reconhecer que o Estado do Acre, apesar de todas as dificuldades, possui normatizado em âmbito institucional o programa Bem-Me-Quer da Polícia Civil. O referido projeto, idealizado por esta Autoridade Policial e autora do artigo aqui publicado, foi regulamentado em maio de 2022 (Portaria Regulamentar Nº 02 De 17 De Maio De 2022) e institui a padronização da estrutura do ambiente, recepção, acolhimento e atendimento às vítimas de violência no âmbito de Polícia Civil do Estado do Acre, nas Delegacias de Polícia do interior do Estado, por meio da implementação do Projeto “Bem-me-Quer”. Dentre os “considerandos” da referida portaria regulamentar, destaca-se a necessidade de se adequar o ambiente, acolhimento, recepção e os atendimentos, em âmbito de polícia judiciária nas delegacias do interior, as quais não dispõem de delegacias especializadas, das vítimas de violência física, psicológica, moral, patrimonial, sexual que envolvem mulheres, adolescentes e crianças às normas infraconstitucionais existentes, quais sejam: 1. vítimas mulheres de violência doméstica e familiar contra a mulher – Lei n 11.340/2006 (Lei Maria da Penha); 2. vítimas de violência Crianças e Adolescentes – Lei 13.431/2017 (Lei Henry Borel).

A realidade brasileira é alarmante e os dados revelam uma epidemia de violência contra a mulher. A 10ª edição da pesquisa Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher mostra que 30% das mulheres do país já sofreram algum tipo de violência doméstica ou familiar provocada por um homem. Dentre elas, 76% sofreram violência física, índice que varia de acordo com a renda. Enquanto 64% das mulheres que sofreram violência doméstica ou familiar e que recebem mais de seis salários mínimos declaram ter sofrido violência física, esse índice chega a 79% entre as vítimas com renda de até dois salários mínimos.6

A necessidade de se ter um olhar diferenciado nos casos de violência doméstica é notória. A legislação não traz apenas ideias a serem seguidas. Impõe o legislador a necessidade de se efetivar os direitos durante o atendimento, acolhimento, recepção e inquirição de mulheres vítimas de violências praticadas no contexto doméstico e familiar.

É certo que se garantindo tais direitos, o que é possível por meio do atendimento oferecido pela DEAM onde há policiais capacitados e ambiente adequado, as vítimas se sentem acolhidas e encorajadas a denunciar, reduzindo a triste estatística das cifras negras.7

Realizando um paralelo com o delito de feminicídio, “conclui-se que a prevenção do feminicídio é do domínio da razão e, por isso, é matematicamente previsível”. 8 Assim, estimulando-se as denúncias de crimes dessa natureza e dando conhecimento ao Estado de que se trata de vítima de violência será possível realizar todo o trabalho articulado e multidisciplinar para se proteger àquela mulher.

A subnotificação de violência contra as mulheres no Brasil foi de 98,5%, 75,9% e 89,4% para as violências psicológica, física e sexual, respectivamente. É o que revela estudo recém-publicado por pesquisadores da UFMG, da University of Washington (EUA) e da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), que estimou a subnotificação da violência contra as mulheres no 6 O levantamento, realizado em parceria com o Observatório da Mulher contra a Violência (OMV) a cada dois anos, integra série histórica iniciada em 2005 e tem por objetivo ouvir cidadãs brasileiras acerca de aspectos relacionados à desigualdade de gênero e a agressões contra mulheres no país. Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher – DataSenado 2023. Disponível em: . Acesso em 24.01.2024. 7 Cifra negra é um termo utilizado na criminologia para se referir a crimes que não chegam ao conhecimento das autoridades, ou seja, não são registrados oficialmente. 8 Realidades : mulheres vivas: feminicídio é evitável : um estudo da violência letal contra mulheres por serem mulheres no Acre (2018-2022) / coordenação Patrícia de Amorim Rêgo, Aretuza de Almeida, Marcela Cristina Ozório ; ilustração Claudeney Alves de Souza. — 2. ed. — Rio Branco, AC : Ministério Público do Estado do Acre, 2023, pg. 15. Disponível em: . Acesso em 25.01.2024.

A título de exemplo e para se comprovar o aqui afirmado acerca do aumento de denúncias diante da prestação de atendimento especializado e em ambiente adequado, recorrendo ao Estado do Acre10
– referência infelizmente negativa pelo índice de feminicídio – constatou-se um aumento significativo de ocorrência flagrancial de violências de gênero contra a mulher no período de abril a dezembro de 2023 em relação ao mesmo período do ano de 2022 em que não havia o funcionamento da DEAM na capital 24h.

Tomando os índices de número de lavratura de Autos de Prisão em Flagrante, houve, com o funcionamento da DEAM 24h de Rio Branco, um aumento de mais de 100% de lavratura de APFs pelos Delegados Plantonistas,11 razão pela qual questiona-se: aumentaram os casos ou as denúncias?

A resposta aqui mais proporcional a ser apresentada é a de que os dois, na medida
em que, de fato, houve estatisticamente um aumento de casos de violência praticada no
contexto doméstico e familiar, mas especialmente a diminuição da cifra negra com o
funcionamento da DEAM 24h, o que resulta positivamente no combate efetivo de crimes
dessa natureza, pois atinge tanto a repressão quanto a prevenção.

Há uma teoria bastante difundida nos estudos feministas, a do “backlash”, e que pode ajudar a entender por que a violência contra as mulheres continua crescendo num modo geral: na medida em que avançamos em ações e intenções que promovam a igualdade de gênero em diferentes espaços, as violências contra as mulheres aumentam. Seria uma reação ao fato de tentarmos romper com os papéis sociais que nos foram histórica e culturalmente atribuídos.

UFMG. Pesquisa revela alto índice de subnotificação de violência contra as mulheres no Brasil. Disponível em: < https://www.enf.ufmg.br/index.php/noticias/2913-pesquisa-revela-altoindice-de-subnotificacao-de-violencia-contra-as-mulheres-no-brasil>. Acesso em 25.01.24. 10 Os demonstram que 01 mulher por mês foi vítima de feminicídio nos últimos cinco anos no Acre (2018 a 2022). Realidades : mulheres vivas : feminicídio é evitável : um estudo da violência letal contra mulheres por serem mulheres no Acre (2018-2022) / coordenação Patrícia de Amorim Rêgo, Aretuza de Almeida, Marcela Cristina Ozório ; ilustração Claudeney Alves de Souza. — 2. ed. — Rio Branco, AC : Ministério Público do Estado do Acre, 2023, pg. 15. Disponível em: . Acesso em 25.01.2024. 11 A referência é uma estimativa de relação às lavraturas de APF na DEFLA Rio Branco de 2022 (cerca de 171 de abril a dezembro de 2022) X 350 lavraturas de APFs no mesmo período – abril a dezembro de 2024- pela DEAM Rio Branco em funcionamento 24h. 12 BUENO, Samira; MARTINS, Juliana; LAGRECA, Amanda; SOBRAL, Isabela; BARROS, Betina; BRANDÃO, Juliana. O crescimento de todas as formas de violência contra a mulher em 2022. In: FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, p. 137, 2023.

Com o atendimento ininterrupto, isto é, atendimento especializado e acolhimento
em local adequado, como é o caso da DEAM, as vítimas se sentem mais encorajadas a
denunciar. Além disso, há um olhar mais atento por parte dos policiais envolvidos no
atendimento quando se trata de lotação na DEAM, de forma que as ocorrências são
analisadas com mais cautela e, ainda, é possível oferecer integralmente os serviços de
apoio às vítimas previstos na legislação e já mencionados acima.
13
Considerações finais

As estatísticas acerca das violências contra a mulher no Brasil são alarmantes. O 17° anuário brasileiro de 2023 demonstra o crescimento de todas as formas de violência contra a mulher.14 É notória a epidemia vivenciada diante da sociedade ainda estruturalmente machista e patriarcal15
. E, se os dados revelados causam perplexidade, imaginem o real tamanho do problema considerando ainda os casos subnotificados, ou seja, os que sequer chegam ao conhecimento das autoridades? As chamadas cifras negras.

É certo que para se combater de forma eficaz a violência de gênero, as denúncias devem ser realizadas para então ser possível a atuação estatal na repressão e, também, a prevenção.

Uma das formas de se estimular que os casos cheguem na principal porta de entrada (Delegacia de Polícia Civil) é realizar o atendimento às vítimas de forma especializado em ambiente adequado de maneira a garantir o acolhimento humanizado garantindo a segurança emocional das vítimas e confiança nas autoridades, de forma que, em caso de reiteração da violência (o que é comum), certamente a ofendida recorrerá novamente ao sistema.

Um bom atendimento ecoa, pois bem atendida, a própria vítima estimulará outras mulheres a denunciarem e, assim, haverá a diminuição das subnotificações que é um problema sério e complexo de difícil enfrentamento.

Fato é que a Unidade de Polícia Judiciária é a porta de entrada para a vítima que supera inúmeros desafios até criar coragem para conseguir denunciar, de forma que o atendimento por policial capacitado e em ambiente adequado em sede policial é imprescindível para o correto acolhimento dessa vítima visando, ainda, evitar ao máximo a revitimização.16

Os danos emocionais que a infração violenta por si só causa são incalculáveis, de forma que são reforçados se o atendimento não for prestado com humanidade e, aqui, inclui-se o atendimento capacitado em ambiente adequado que a DEAM oferece. Ademais, em se tratando de violência sexual, a atenção deve ser ainda mais especial exigindo uma postura ativa para se evitar ao máximo a vitimização secundária.

A missão da DEAM é exercer as funções de atendimento policial especializado para as mulheres e de polícia judiciária, e a investigação criminal de infrações penais sensíveis praticadas no âmbito doméstico e familiar contra a mulher, como delegacia especializada de funcionamento ininterrupto no atendimento e acolhimento das vítimas e prevenção e repressão eficiente às diversas formas de violências previstas na Lei Maria da Penha que configuram violação dos direitos humanos, dentre as quais, física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.

Nesse sentido, o funcionamento das DEAM 24h é crucial no enfrentamento da violência contra as mulheres por motivação nas desigualdades de gênero e na proteção dos direitos das mulheres no Brasil, estas historicamente reprimidas, pois sua importância, conforme abordado, transcende a mera função policial.

Referências

16 GOMES, Mariana. PROJETO “BEM-ME-QUER” DA POLÍCIA CIVIL. Disponível em: < https://pc.ac.gov.br/projeto-bem-me-quer-da-policia-civil/>. Acesso em 25.01.2024.

ACRE. MINISTÉRIO PÚBLICO. FEMINICIDÔMETRO. Disponível em: . Acesso em 25.01.2024. ACRE. Polícia Civil. Portaria Regulamentar Nº 02 De 17 De Maio De 2022. Institui a padronização da estrutura do ambiente, recepção, acolhimento e atendimento às vítimas de violência no âmbito de Polícia Civil do Estado do Acre, nas Delegacias de Polícia do interior do Estado, por meio da implementação do Projeto “Bem-me-Quer”. Rio Branco, AC: Diário Oficial do Estado, 2022.

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BRASIL. Lei Nº 11.340 de 07 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 2006.

BUENO, Samira; MARTINS, Juliana; LAGRECA, Amanda; SOBRAL, Isabela; BARROS, Betina; BRANDÃO, Juliana. O crescimento de todas as formas de violência contra a mulher em 2022. In: FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, p. 136-145, 2023. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/ uploads/2023/07/anuario-2023.pdf. Acesso em: 25.01.2024.

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G1. Apenas 12% das delegacias da mulher no país funcionam 24 h. Disponível em: . Acesso em 24.01.2024)

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LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação Criminal Especial Comentada. 8ª Ed. São Paulo: JusPodivm, 2020.

Realidades: mulheres vivas: feminicídio é evitável : um estudo da violência letal contra mulheres por serem mulheres no Acre (2018-2022) / coordenação Patrícia de Amorim Rêgo, Aretuza de Almeida, Marcela Cristina Ozório ; ilustração Claudeney Alves de Souza. — 2. ed. — Rio Branco, AC : Ministério Público do Estado do Acre, 2023, pg. 15. Disponível em: . Acesso em 25.01.2024.

SAFFIOTI, Helleieth. Gênero, patriarcado e violência. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular/Fundação Perseu Abramo, 2015.

UFMG. Pesquisa revela alto índice de subnotificação de violência contra as mulheres no Brasil. Disponível em: < https://www.enf.ufmg.br/index.php/noticias/2913-pesquisarevela-alto-indice-de-subnotificacao-de-violencia-contra-as-mulheres-no-brasil>. Acesso em 25.01.2024.

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